O Aniversário do Grande Autor.

Se vivo estivesse, Georges Joseph Christian Simenon comemoraria 111 anos de nascimento amanhã. Falecido em 1989 aos 86 anos, ele foi um escritor único. Não há ficcionista que rivalize com sua produção em todo o século XX. Sua prosa exibe a simplicidade do gênio, a exatidão de cada termo assentada em frases curtas e descrições diminutas. Suas tramas exalam odores e sentidos, seus personagens são imperfeitamente humanos, e há no narrador um esforço por compreender, por perdoar o pior crápula que passe por suas páginas. É esta combinação que constrói uma obra personalíssima que muitas vezes se apóia em uma trama quase inexistente para mergulhar no drama das existências simples, desta “gente miúda” como Simenon muitas vezes definiu seus personagens.
Sua obra está divida em duas correntes: os policiais e os ” não Maigret”, ou “romances duros”, como ele mesmo os definiu. Nos policiais brilha uma das mais carismáticas figuras de toda a literatura de detetives: o comissário Jules Maigret. Fiel a seu ideário de romancista, Simenon criou um anti-heroí, um homem comum, casado, que ostenta uma vida pequeno-burguesa e resolve seus casos via um trabalho incessante aliado a sua vontade de entender as circunstâncias de cada um dos dramas que investiga. Ambientados em uma França pré-Segunda Guerra Mundial, os livros mostram um mundo em transformação onde o passado rapidamente desaparece para dar lugar a uma modernidade que ainda não sabe como se comportar. É este universo que o autor belga descreve com perfeição. Muitas das chatas que cruzam os canais entre a Holanda,a Bélgica e a França ainda são puxadas por cavalos e os barqueiros vivem ali com suas famílias. É o que basta para Simenon criar uma obra-prima chamada “A Barcaça da Morte” (Le Charretier de la Provedence). Uma história de amor e vingança que Maigret desvenda quase com tristeza, a medida que os motivos para o crime cometido vão se esclarecendo. O universo de animais, os hábitos destes marinheiros de terra, os odores dos bares, dos cigarros e cachimbos fumados sem parar, o som dos risos e das lágrimas, saltam da prosa enxuta e ao mesmo tempo luminosa do grande escritor.
Simenon se definia como um artesão. Para ele, as palavras eram as ferramentas ( Stephen King usa os mesmos termos para definir seu ofício no excelente ” On Writting, a Memoir of the Craft”) que utilizava para esculpir seu trabalho. É com esta convicção que ele transforma seus personagens comuns em criaturas tanto terríveis como trágicas. É exemplar a criação da gangster que vem do leste europeu para realizar um roubo em Paris em ” Maigret e o seu Morto“( Maigret et son Mort). O comissário se vê frente ao desafio de enfrentar pela primeira vez o crime organizado, coisa que muitos julgam ser demasiado para ele. Recheado de inesquecíveis personagens secundários, o livro é um dos raros exemplares de ação física de toda a série. Para a as histórias de Maigret, Simenon desenvolveu um estilo todo especial, narrando em terceira pessoa, mas com a ação sempre vista através dos olhos do policial, o que cria uma enorme identidade com o leitor, dando da impressão que temos um texto escrito em primeira pessoa. Quem experimenta qualquer exemplar não descansará até esgotar todos os

20140212-172411.jpg

Nos “romance duros” Simenon torna-se ainda mais intimista, mergulhando em universos fechados, vistos através de indivíduos para quem a felicidade é um sonho impossível. Aqui as classes sociais se misturam, mas ricos e pobres seguem sendo “gente miúda”, perdidos num universo íntimo que destorce a realidade, dando a estes indivíduos uma visão toda particular do mundo que os rodeia. Os exemplos são inúmeros, já que o autor publicou mais de 400 romances, além de contos e livros de memórias. Mas talvez valha mencionar alguns títulos especialmente significativos( o que é sempre uma escolha pessoal).
O Santinho” (Le Petit Saint). Um raro exemplo de felicidade na obra de Simenon. A história de um pintor, desde sua infância paupérrima, fruto de uma família disfuncional, até a idade madura e sua consagração como artista. Rudeza e lirismo se misturam na história do menino feio que vê o mundo como um quadro onde as figuras se mesclam e as cores são sempre esmorecidas. Narrado com maestria, tem um final de tocante intimismo.
A Viúva” (La Veuve Coudrec). Escrito antes de “O Estrangeiro” de Albert Camus, o livro é uma antecipação dos temas discutidos naquela obra. Um criminoso fugitivo encontra abrigo na fazenda de uma viúva que vive em guerra com seus parentes e é desprezada pela comunidade que habita. Uma criatura quase brutal, ela se deixa envolver pelo desconhecido que pouco a pouco se aproveita dela e da situação ao seu redor. Violência sem motivo aparente, entregas sem paixão, um universo que antecipa a visão de mundo dos existencialistas do pós-guerra.
O Filho“(Le Fils). O sacrifício de um pai que arruina sua carreira política para salvar o filho da prisão. Seco e quase desesperado, ainda assim o livro exala lirismo quando o genitor narra ao descendente sua vida e as escolhas feitas. Um dos grandes livros de Simenon. Trama e forma funcionam a perfeição criando um universo tão verossímil quanto lúdico, tamanha a força das descrições de ambientes, odores e sentimentos.
O Homem que olhava o trem Passar” (L’homme qui Regardait Passer les Trans). A tragédia de Kees Popinga, funcionário de uma empresa de navegação que vê a vida desmoronar quando o patrão aplica um golpe para fugir das dívidas levando a empresa a falência. Toda uma vida é revista pela perspectiva desta queda que transtorna a existência de um homem que acreditava em sua rotina e na certeza de suas opções. Ao assumir um crime que não cometeu, este pequeno personagem faz o único desafio possível ao mundo.
Escolha um título entre os citados ou qualquer um que tenha a assinatura do “Balzac de Liége” como André Gide definiu este escritor incomparável que, mesmo se considerando um artesão, legou uma obra riquíssima a Literatura Universal. Feliz aniversário Georges.

Deixe um comentário